Agricultores portugueses dizem que quase 30% da produção anual não chega a ser comercializada porque apresenta defeitos na cor, no formato ou no tamanho
O “culto da perfeição” está a fazer que os americanos deitem para o lixo quase tanta comida como a que consomem. Por apresentarem pequenos defeitos ou escaparem aos padrões definidos, muitas toneladas de alimentos não chegam aos supermercados e, em muitos casos, ficam a apodrecer nos campos.
Por cá, é estimado que os portugueses desperdicem um milhão de toneladas de alimentos por ano, o equivalente a 17% do que é produzido. Tal como nos EUA, muitas toneladas de vegetais e fruta são descartadas por não serem “perfeitos”.
Uma grande quantidade de produtos frescos produzidos nos EUA é deixada a apodrecer nos campos, usada para alimentar gado ou depositada nos aterros, devido a padrões de beleza “irrealistas e inflexíveis.” A informação é avançada pelo jornal The Guardian, que entrevistou agricultores, distribuidores e outras pessoas ligadas ao setor alimentar.
De acordo com as estatísticas oficiais do governo norte-americano, cerca de 60 milhões de toneladas de alimentos são desperdiçadas anualmente, o que corresponde a um terço da produção. Mas o novo estudo aponta para uma realidade mais dramática: metade do que é produzido não chega aos consumidores. Isto não só aumenta a fome e a pobreza, como tem graves consequências ambientais.
Em Portugal, é estimado que um milhão de toneladas de alimentos seja deitado para o lixo anualmente. “Seguramente, entre 20 e 30% do que é produzido pelos agricultores não é comercializado”, adiantou ao DN João Dinis, dirigente da Confederação Nacional de Agricultores. Em causa estão pequenos defeitos na cor, no calibre ou no formato. “As pessoas têm de se desfazer deles: ou dão ao gado ou vão para o lixo”, explicou o agricultor. Mas, se não houver escoamento, há quem prefira não colher, para não ter mais custos. “Há situações em que o agricultor fica a chorar a olhar para o que não consegue escoar”, explicou.
Apesar de não atingir os padrões de consumo, João Dinis ressalva que “há muita produção nacional que, não tendo a calibragem exigida, é de grande qualidade alimentar”. E o custo da produção recai sobre tudo o que é produzido, pelo que há um grande prejuízo para os agricultores.
Ao DN, Isabel Jonet, presidente do Banco Alimentar contra a Fome, explica que “na agricultura, não se pode falar em desperdício, uma vez que, quando fica no solo, há reposição de matéria orgânica e, noutros casos, a produção é usada para alimentar os animais”. Só quando vão para aterros é que a fruta e os legumes são considerados desperdício. “Se não forem, será excedente.” Não se sabe que percentagem de produção é deixada nos campos, mas Isabel Jonet lembra que “há muitos incentivos para a doação de hortofrutícolas. Os agricultores são pagos para não destruírem o excedente e o doarem aos bancos alimentares”.
Anualmente, o Banco Alimentar distribui cerca de 30 mil toneladas de alimentos. “75% são excedentes alimentares, que seriam destruídos, com impacto ambiental e custos associados”, adianta.
Para combater o problema, os americanos estão a criar serviços de venda de produtos que fogem aos padrões de beleza, à semelhança do que acontece em Portugal com o projeto Fruta Feia, que desde 2013 evitou que 300 toneladas de fruta e legumes fossem descartados. Joana Baptista, membro da cooperativa, explicou ao DN que compram aos agricultores “produtos que têm um defeito estético – problemas na forma, cor, tamanho – mas que têm a mesma qualidade”, para serem colocados em cestas e vendidos nos pontos de distribuição. As mais pequenas (três a quatro quilos) custam 3,5 euros e têm sete variedades de produtos, as maiores (seis a oito quilos) têm oito variedades e custam sete euros.
“Os olhos também comem e a estética é apelativa, mas as pessoas que consomem Fruta Feia ligam à qualidade e não à aparência”, diz Joana Batista, acrescentando que o movimento trabalha para “inverter a tendência” do culto da perfeição.
Nos últimos anos, várias organizações mostraram-se empenhadas em reduzir a quantidade de alimentos que vai para o lixo ao longo de toda a cadeia. Ana Isabel Morais, diretora-geral da Associação Portuguesa de Empresas de Distribuição, diz que “há muito que o setor desenvolveu políticas, ações e parcerias para encaminhar para reutilização o que pode resultar em desperdício”. Entre outras medidas, procura fazer “uma gestão mais eficiente de stocks, embalagens adequadas ao perfil do consumidor, transformação de excedentes, formação de colaboradores”. Em Portugal, a Assembleia da República declarou 2016 como Ano Nacional de Combate ao Desperdício Alimentar, tendo sido lançadas várias recomendações nesse sentido
Fonte: DN