Declaração de Herman José que deixa Portugal de boca aberta!
Sente-se capaz de começar de novo, com uma outra profissão e num lugar qualquer, acha que a vida começa todos os dias e vê o passado como se estivesse a assistir da plateia. O mar ensinou-lhe a ver a vida
“Sou uma espécie de prostituta com uma carteira de clientes que adora. Não faço fretes”
Está sentado à mesa de pedra onde no dia a seguir se reunirá a equipa do programa que arranca em setembro na RTP.
Acaba de fazer cinco espetáculos a solo, seguidos de horas de autógrafos, beijinhos e fotos, e aproveita o isolamento da casa de Azeitão onde hoje tem o quartel-general. Na piscina, um patamar abaixo e resguardada dos nossos olhares, está a mãe Maria Odette, esplendorosa no biquíni azul e bâton vermelho. No fim da entrevista, contar-me-á como o filho compensou a frustração pessoal de não se ter dedicado à vida artística como sonhou, mas faz notar que quando Herman começou a carreira, em 1975, ela pediu a Nicolau Breyner que o libertasse, para que o filho estudasse engenharia na Alemanha como estava previsto. Ficou zangada com Nicolau durante anos, porque a aconselhou a esquecer o curso e anunciou que o filho ia ser um grande artista. O verdadeiro artista, como diria Tony Silva, uma das criações inesquecíveis do Tal Canal – a par de Nelito, José Esteves ou Marilú, nos idos de 1983. A casa de Azeitão fica aconchegada num vale cujo arvoredo esconde os vários edifícios destinados a ensaios e a alojar a equipa, e nada no portão faz perceber quem ali vive. Aos 62 anos, Herman José mantém as gargalhadas infantis, o deslumbramento perante os outros e a disciplina de trabalho, uma combinação feliz. Passou tempos difíceis, tempos de euforia, tempos de tédio. Agora olha para trás e diz que é como se assistisse da plateia às personagens que criou. Voltou a ter o prazer do palco depois de se ter gasto a despejar piadas à espera de receber o cheque.
Tem aqui em Azeitão o quartel–general. Não era a casa de descansar?
Era a casa transitória para quando eu tivesse dinheiro para concretizar o sonho de ter uma casa em Cascais. Mas por muito que trabalhasse tinha sempre metade. Arranjei um espaço numa zona possível, ainda a Margem Sul não estava na moda. Mas a vida prega-nos partidas deliciosas. Quando tive dinheiro, a prioridade foi ter uma casa em Lisboa por causa das gravações de televisão. Depois cumpri o meu sonho náutico de ter barco e passear no verão para as ibizas e as sardenhas. Mas a minha vida passou a ser uma monocultura a partir dos anos 1990: só televisão. Como deixei de fazer espetáculos, este sítio, com espaço para os músicos e para ensaiar, deixou de fazer sentido. Há dez anos, percebi que a monocultura televisiva estava a sufocar-me, sentia-me infeliz profissionalmente. Pensei: qual foi a última vez que fui feliz?
E quando tinha sido?
Quando andava na estrada a fazer espetáculos, e a viajar para a África do Sul, para Newark e para Paris. A minha vida era uma felicidade nessa altura. Recuperei essa vertente, mas o mercado não está de pernas abertas à espera de que tu voltes, tive de reconquistá-lo. O mercado dos espetáculos ao vivo não decaiu, continua pujante. Reconquistei-o devagarinho, passo a passo. De há dois anos para cá, sinto que voltei à minha posição.
Faz quantos espetáculos por ano?
É difícil de definir porque sou multiusos. Tão depressa faço um espetáculo num palco para dez mil nas festas de Portimão, como um congresso para médicos ou uma gala em Paris para uma financeira que convida os clientes lusos.
Faz espetáculos diferentes?
A base da piza é a mesma mas os conteúdos variam. Então a casa de Azeitão voltou a fazer todo o sentido. É aqui que tenho o epicentro da minha vida profissional, as reuniões com as equipas, os ensaios com os músicos, é aqui que se escreve. É a fábrica. Mas continuo a viver em Lisboa porque me dá mobilidade.
Está a preparar um novo programa para a RTP?
Amanhã mesmo cá estamos todos – uns dez – reunidos à volta desta mesa de pedra, a comer uma paella e a fazer brainstorming. Vem a equipa de realização e de produção, e aqui estaremos a partir pedra para em setembro fazermos um programa que nos apeteça ver. Não é para cumprir o contrato nem marcar o ponto. É para fazer um produto que, independentemente de ser um êxito e ter audiências, nos seja sumarento. Aconteceu isso com a série do Nelo & Idália, que não teve a visibilidade que teria se a RTP fosse canal único como antigamente, mas que eu fiz com toda a entrega.
E foi o próprio Herman que escreveu?
Escrevi onze horas e meia de televisão. São seis filmes de longa-metragem, um monte de papel da altura de uma cadeira, e feito com muito rigor. Fiquei muito orgulhoso do produto final. Os tempos agora são outros: aquilo vai para o ar e é esmagado pelos dois gigantescos eucaliptos chamados novelas da TVI e da SIC. A novela passou a ser uma espécie de Continente, tem tudo: humor, música, drama, violência doméstica, racismo, tudo, até o Tony Carreira. As pessoas, que têm vidas pequeninas porque não têm outro remédio, abrem os seus horizontes naquele momento para salas com cem metros quadrados, viagens à baía de Luanda, mulheres muito bonitas que mostram as maminhas e se calhar à noite ajudam a ter um momento erótico com a senhora de 130 quilos com quem estão casados. É muito difícil de combater isto, sobretudo num país pequenino. Nos EUA há 180 canais, todos com programações específicas, e há tantos milhões que quando se fala de um flop são dois milhões de espectadores.
Vai fazer um talk show ou humor?
É um falso talk show. Parte disso mas acontece tudo, tem um cenário com o formato de casa, não é convencional. É um patchwork de muitas coisas, de música, humor, disparate, surrealismo, entrevistas sérias, cabe lá tudo.
É o dono da casa?
Sou o dono da casa, exatamente.
Volta a juntar os amigos?
A Maria Rueff felizmente é-me oferecida pela Direção de Programas. Não sou produtor, não posso construir a meu bel-prazer o programa. Volto ao meu conjunto do Pedro Duarte, é muito bom ter aqueles momentos em que os artistas podem cantar ao vivo, o que é uma coisa única – essa faceta não quero perder. E vou ter um piano na sala para o Jorge Palma ou a Rita Guerra estarem ali a tocar, ou eu. Tal como aconteceu com o Nelo & Idália, prefiro que sejam poucos mas militantes e que fiquem agradecidos e marcados por um produto que faz a diferença, e não fazer uma coisa ultraleve nem assim-assim. Tive uma experiência agradável com o Programa da Tarde, a produção foi atrás de mim e acabámos por fazer um programa diferente em que havia uma hora para estar ao piano com o Ivan Lins e se recebia a embaixatriz de Marrocos para falar de coisas bonitas. E obrigámos a concorrência a reagir.
Vai cozinhar neste novo programa?
Tenho um apontamento de culinária em cada programa mas é ultrarrápido, para justificar qualquer refeição que eu queira servir a alguém.
O que é que acha que mudou desde o tempo do Sr. Feliz e Sr. Contente, quando era um rapaz de calças boca-de-sino?
Não me consigo ver nas minhas várias épocas, é como se não estivesse lá, é estranhíssimo. Estou sempre a ser confrontado com fotografias e acontece-me chegar às festas e vir uma senhora de 80 anos ter comigo: “Não se lembra de mim? Fui eu que lhe paguei o cachet em 1977, veio cá ganhar 40 contos, eu era a mordoma das festas.” Pois era, mas tinha 40 anos na altura. Não reconheço aqueles artistas passados. Às vezes sinto-me sentado numa plateia a ver uma vida que não é a minha. Não tenho o sofrimento da perda do momento que se viveu e que foi tão interessante.
Não só profissionalmente?
Não só profissionalmente. Sinto que a vida começa do princípio todos os dias, ou todos os anos. O passado são coisas encerradas, algumas delas mais presentes, outras menos. Quando vejo uma fotografia com o meu pai tenho nostalgia de não o ter mais. Ou com o Nicolau – ainda nem percebi bem que ele desapareceu. Ou o Luís Pedro Fonseca, com quem comecei a tocar – também ainda não digeri. Ontem li um artigo que o filho dele escreveu, já morreu há um ano. Para mim, eles continuam a existir, estão lá nos sítios e um dia destes vou ter com eles. Esse lado é um bocadinho sombrio, a quantidade de gente que já desapareceu. Mas no dia-a-dia sinto sempre que estou a começar do princípio, o que é estranho mas inspirador, porque nunca transporto comigo os vícios do passado nem aquela coisa do “é-me devida alguma atenção”. Estou sempre francamente flat.
Mas foi ganhando o quê, com a vida?
O que eu tenho, e não tinha, é uma experiência de vida tão grande em todos os aspetos que me permite resolver na hora coisas que uma pessoa nova não sabe resolver. Seja a colocação das colunas, como ontem, quando a dos supergraves estava mal e eu expliquei onde devia estar, seja num hotel onde explico que não vale a pena servirem aquele sumo de laranja porque lhes estraga o prestígio, só porque não compraram uma máquina de fazer sumo fresco. Passo a vida retificando. No outro dia, uma criança estava no supermercado a pedir mortandela e eu expliquei à criança e à mãe que a palavra é mortadela. A mãe não deve ter achado graça. Isso tem piada, estar em controlo de uma quantidade de coisas.
Sente que controla a sua vida?
Sinto que podia haver uma revolução e eu ter de fugir para qualquer sítio sem nada, nem sequer a caneta que o Champalimaud tinha para assinar cheques, e tenho capacidade para fazer um fresh start em qualquer sítio em poucos dias, ou porque abria um restaurante, era ajudante de cozinheiro, ou ia para a receção de um hotel de cinco estrelas – falo bem seis línguas – ou ia para comentador num canal falar de qualquer coisa, de música por exemplo, ou ia tocar piano e coisas do Sinatra no hall de um hotel. Isso é que é fascinante hoje na minha vida. Só há muito pouco tempo eu sinto, quando acabo um espetáculo, que fiz arte. Antigamente não sentia.
Então como era?
Sentia “já enganei mais uns, vamos lá embora”. Ia lá dizer umas coisinhas e cantar umas merdinhas e aquilo não era nada. Mas agora o espetáculo é muito artístico, mesmo com coisas simples. Tenho uns gadgets eletrónicos com que faço umas habilidades giras, acordes, vozes, efeitos. Quando acabo, seja num espetáculo popular seja num centro cultural, tenho essa sensação. No outro dia fiz um num centro cultural de Toronto, muito bonito, só com um grande piano Steinway. No fim, a própria equipa que nunca tinha ouvido falar de mim veio pedir fotografias e autógrafos. E disseram-me: “Nos últimos tempos os melhores espetáculos que vimos foram o seu (nem sabiam o meu nome), a Diana Krall e o Jamie Cullum.” Hoje sinto que não engano ninguém. Chego ao palco e vou fazer muito bem.
Esforça-se para fazer sempre o melhor possível?
E só saio com uma taxa de agrado de cem por cento. Faço o sistema bolo de bolacha. Como diz o Woody Allen, desde que uma pessoa perceba aquela coisa específica já valeu a pena. Posso ter um público muito popular mas não deixo de meter no bolo de bolacha piscares de olhos. Vou dar um exemplo. O Nelo fala ao telefone com a filha e refere-se ao órgão reprodutor masculino de alguém. Fala na glampe, e toda a gente percebe que é a glande, depois fala no prapuço, que é o prepúcio, e toda a gente percebe. Depois pergunta se ele é circunscrito, que é circuncidado, toda a gente ri. E como ele não é circunscrito, o Nelo diz: “Então não pode ir para judeu nem pode ir trabalhar para a Schindler porque não faz parte da Lista.” Esta piada da Schindler e da Lista é para três pessoas no meio de dez mil – mas às vezes são mais. Nas Caldas, num espetáculo completamente popular, esta história provocou uma gargalhada que foi acompanhada por duas ou três mil criaturas novas que estavam a assistir. Tudo vale a pena, sempre. Não se deve pôr etiqueta de burro seja a quem for.
Tem um guião?
Tenho um património que ao todo tem dez horas e vou usando consoante os sítios.
E conforme o que lhe apetece?
Sim, porque tenho de me divertir a mim próprio.
Sempre aconteceu isso?
Não. Uma das razões que me fizeram abandonar o espetáculo é que eu não me divertia, era um sofrimento tal que ficava doente três dias antes. Era mesmo só para ir buscar o cheque. Era uma espécie de prostituição. Pior, porque à prostituta de vez em quando aparecem uns rapazes novos e ela ainda goza, mas neste caso era mesmo só sofrimento. Foi preciso chegar perto dos 60 anos para finalmente descobrir o truque certo para me divertir.
E é qual?
Passou talvez pela minha inclusão como músico, o que me deu uma autossuficiência que não tinha. A música é uma linguagem internacional e consigo fazer uma massa que une e espevita todo o tipo de públicos, mesmo aquele que fala mal português ou nem fala sequer. Recentemente no Algarve havia grupos grandes de turistas que não percebiam nada do que eu estava a dizer mas deixaram-se ficar porque acharam aquilo agradável. Depois dediquei-lhes uma sinatrada, o Come Fly with Me e ficaram histéricos.
O seu público é heterogéneo, atravessa várias gerações. O seu prazer contamina os outros?
Sempre tive uma grande ligação às gerações mais novas. Quando comecei a fazer o Tal Canal eu era sobretudo um produto geracional, como é hoje o Agir com os miúdos. Como o humor está sempre ligado a uma certa infantilidade, esse elo nunca se quebrou. Sempre tive gente muito nova a rir-se dos meus disparates. Hoje é ajudado pelo YouTube, porque os miúdos fazem a sua própria programação de televisão e quando estão a ver uma coisa divertida do Ricardo Araújo Pereira logo a seguir apareço eu porque estamos ligados: “Olha que giro, quem é este senhor?” O Tal Canal tem imensos fãs novos.
E muitas pessoas sabem de cor os textos.
Isso é mérito do YouTube. E há também os pais que infetam os filhos e eu estou-lhes eternamente grato. Os pais estão felizes a ver coisas minhas antigas ou recentes e os filhos vão atrás. Vejo isso porque fico sempre a dar autógrafos, às vezes a sessão de autógrafos é mais longa do que o próprio espetáculo.
Fica horas a dar autógrafos no fim dos espetáculos?
Não posso dizer que não a pessoas que estão com crianças horas na fila a pedir para tirar uma fotografia. No outro dia apareceu uma senhora que disse: estou aqui por causa dele, e era o filho de 10 anos – ela se calhar nem gostava. Quando um senhor de 62 anos é um produto geracional de um miúdo de 10 que arranca de casa a mãe de 50 que já não me pode ver, acho maravilhoso.
Disse que tem um património que poderia durar dez horas…
Um dia faço uma maratona com a bilheteira oferecida a uma instituição. Faço talvez umas 12 horas, e as pessoas vão passando, pagando bilhete, vão entrando e saindo e no final há uma quantia bestial para oferecer a uma obra meritória. Era um desafio muito engraçado. Cada vez me sinto mais em condições de isso acontecer.
A sua imaginação é inesgotável?
Sempre gostei muito da Agustina Bessa-Luís. E quando lhe falaram na capacidade de ser tão profícua ela dizia: eu trabalho todos os dias, é a minha profissão. Mas é uma espécie de operária? Não, isso não, porque tenho a felicidade de não ter horários, trabalho quando me apetece. Posso pegar ao serviço à meia-noite e acabar às quatro da manhã. E dizia: francamente, cada vez escrevo melhor, cada vez os meus livros estão melhores e cada vez estou mais em controlo da minha arte. E eu revejo-me nisso. Isto é uma profissão, é uma coisa técnica. O cérebro divide-se em dois, metade fica ligada aos desgostos, às chatices, às tristezas, às angústias, a outra metade é completamente profissional e está ao serviço da profissão que escolheste e de tentar manter um mínimo de excelência para que tu respeites o teu produto. Foi isso que fiz nesta série do Nelo & Idália.
Como aconteceu esse regresso?
A encomenda foi feita com um espírito muito simpático – “aquilo é tão giro, faz aí coisas de meia hora”. Não valeu a pena dizer que foi feito para ter três minutos, não aguentava meia hora. Tive de abrir aquele leque, arranjar uma circulação periférica à volta daquele organismo para que aguentasse 25 episódios de meia hora. E isso é trabalho. É chegar à folha em branco, vamos lá trabalhar.
Não é uma fábrica também porque nem sempre as ideias fluem, com certeza.
Às vezes não consigo, tomo mais um café, pego na moto e vou dar uma volta. E sempre a cumprir os prazos, a lutar para que as coisas façam sentido. Os computadores facilitam muito. Antigamente a pessoa enganava-se e tinha de deitar fora a folha e começar de novo, era horrível. O computador é maravilhoso também como mecanismo de consulta. Tens de fazer uma piada com países pequeninos e tens a certeza científica de que tens as ilhas Pitcairn e o Vaticano e as ilhas Cocos. Tens uma base de consulta sempre à mão, fabricas num instante uma boa piada que antes implicaria telefonar a alguém ou consultar um livro. Nesse aspeto, esta época é genial. Mas tem o outro lado: aquilo que era antigamente um riacho criativo com meia dúzia de coisas que iam passando, agora é um mar de informação que às vezes para quando há um Benfica-Porto ou o Cristiano Ronaldo a jogar. E no dia seguinte volta ao mesmo, como uma pintura de Jackson Pollock. O panorama hoje são os riscos do Jackson Pollock, todas as cores e nada sobressai, nem os vermelhos, nem os pretos, nem as bolas. É interessante e artisticamente respeitável.
Mas obriga-o a compromissos?
Obriga-me a adaptações. E a compromissos também, claro, mas sobretudo temos de nos ir adaptando às novas regras do jogo. E também às regras do jogo da idade.
O que é isso?
A pessoa por dentro sente-se sempre com 20 e tal anos e depois vê a imagem e afinal já não tem. Deixa–me cá adaptar esta personagem à minha idade. É muito cruel para as mulheres, para as atrizes quando aos 43 anos vão fazer de avós de alguém. “Eu, avó?” Pomos uma cabeleira e com uma boa iluminação ficas suficientemente velha. No caso dos homens é mais benigno mas temos de ter isso em conta. O palco é muito generoso, no palco não tens idade. A maravilhosa Bibi Ferreira faz espetáculos gloriosos com 94 anos, e a Marlene Dietrich aos 74 ainda punha o seu vestido Pierre Cardin, com o seu grande vison, e só deixou de fazer espetáculos porque partiu uma anca.
E no palco tem a reação imediata do público?
Tenho, e se correr muito bem ficam-te eternamente gratos. Na televisão não, “ah foi giro, para a semana é o quê? Faço ideia, deve estar cheio de dinheiro”. Ao vivo parece que se cria uma relação pessoal, às vezes comovente. Há uma mãe e uma filha que já vão no espetáculo 107, mas tenho outras que já viram 20 ou 30 e voltam a aparecer. Isso responsabiliza e é fascinante. E não é patológico, não são pessoas malucas. Da mesma maneira que, se a Joan Rivers fosse viva e eu morasse na América, andava atrás dela por todos os lados porque a adorava, ou o George Carlin ou o Don Rickles que tem quase 90 anos e ainda trabalha. São pessoas que me tocam muito. No outro dia colegas meus humoristas estavam histéricos porque tinham ido ver o Louis C.K. Já tentei várias vezes gostar do homem e não o suporto, não consigo esboçar um sorriso. Irrita-me. O homem é para mim uma espécie de dono de mercearia que por acaso está a dizer umas piadas mas podia dizer “Quer queijinhos frescos hoje? Temos aqui uma frutinha que acabou de chegar.”
É possível a mesma pessoa provocar hilaridade ou essa crispação?
É. Há pessoas que não me suportam, e eu respeito isso porque há muita gente que eu não suporto. Eu não iria ver um espetáculo do Louis C.K. e no entanto desfaço-me, andaria quilómetros, gastaria dias de avião para ver artistas que me fazem comichão na alma. Como na música. Há músicos deploráveis que têm sucesso. Esteve cá uma banda antiga num festival e amigos meus ficaram doidos. A mim soava-me a maus conjuntos de finalistas, um gajo nojento a desafinar. É como a pintura. Havia pintores que eu mandava fuzilar com uma pistola com silenciador na nuca. E outros que são discutíveis tocam-me imenso. Tenho um quadro que adoro, comprei-o há mais de 30 anos e custou-me 900 contos, foi o maior investimento em pintura que fiz na altura. É de um pintor alentejano chamado Palolo. Há pessoas que perguntam “qual é a piada disto, parece uma mira técnica da televisão?” Não sei explicar porque é que adoro o quadro. Se calhar também me tocou a vida dele que não foi fácil, não pintou para ficar rico nem para ser famoso, pintou o que lhe ia na alma. Tudo faz parte quando a gente conhece a vida das pessoas. O que o Picasso me irrita é mentira.
O Picasso irrita-o?
A história do Picasso irrita-me. Sei coisas de mais sobre ele. Era um fona, adorava dinheiro. Usou os seus apoios à esquerda para vender melhor. Pagava as refeições com umas merdas duns desenhos que fazia em Cap d”Antibes nas toalhas. Fazia quatro ou cinco riscos, assinava e pagavam-lhe com um lote de terreno. Sim senhor, fez a Guernica. Muito bem, teve ali um rebate de consciência, “deixa-me cá fazer uma coisa com muita categoria social para depois continuar a ganhar dinheiro”.
Há alguns autores que é melhor não conhecer, valem pela obra.
Depois há outros que têm péssimo prestígio porque oficialmente só gostavam de dinheiro, como o Dalí. Adoro tudo o que ele fez e todos os disparates em que pensou têm o meu apoio. E até alguma compaixão quando imagino que no final da vida ganhava dinheiro para a Gala pagar aos seus prostitutos – como tinha 80 anos, só prostitutos de luxo iam ao castelo onde ela vivia sozinha. Gastava centenas de milhares de dólares em prostitutos pagos pelo marido que ia pintando e só a via a ela. Isto é o limite máximo do amor.
Hoje a sua capacidade de passar anónimo em Portugal desapareceu. Como apanha os pequenos gestos, os trejeitos, as manias?
Basta ver uma tarde da Fátima Lopes para ter isso. Na televisão estamos sempre metidos na vida das pessoas. É bem diferente de quando o Ettore Scola fez o Feios, Porcos e Maus e passou meses em aldeias para perceber como viviam. Ainda há quem faça e tenha esses romantismos.
Hoje a realidade aparece na televisão, as pessoas expõem-se assim tanto?
Quando estão comigo, as pessoas têm um comportamento diferente, põem a sua melhor toalha, tentam não fazer erros, falar bem, nunca as vejo na sua realidade. Não há nada mais divertido do que a televisão, passou a ser o paraíso dos peeping toms, sempre a espreitar a vida alheia. Daí o sucesso do Big Brother. A única grande discussão que tive com o Emídio Rangel – ele era muito teimoso e eu adorava-o – foi quando fui para a SIC. Eu tinha vindo dos EUA e as pessoas andavam doidas com as web cams. Como não se pagava para ter net, havia pessoas que deixavam as câmaras ligadas e fizeram sites onde se podia ver a vida alheia, uns mais atrevidos outros menos, havia uns onde se via os casais a fazer malandrices. Essa febre foi aproveitada pela Endemol para fazer o Big Brother muito antes de se perceber que ela existia. O Rangel disse-me que tinha recusado, achava aquilo um disparate, eu disse-lhe: fizeste mal porque eu vim de lá viciado, agora sigo 18 famílias, 18 casas, e pago cabo. Andava viciado a meter o nariz na vida do quotidiano, eles a cozinharem, as discussões e os pequenos universos. Mas ele disse que a pulsão do público português para o voyeurismo era alimentada pelas novelas, na altura as da Globo. Como ele se enganou! Depois o Marco deu um pontapé e as audiências da TVI explodiram. No dia seguinte o Rangel disse-me entredentes “afinal tinhas razão”. E aí já estava fogo de floresta seca que nada apaga.
Isso não tem tendência para saturar?
Tem, está francamente em decadência mas durou muito tempo. Agora não suporto nem cinco segundos daquilo. Tem que ver com essa coisa avassaladora chamada modas. Não vale a pena fazer nada contra as modas.
O que é moda neste momento? Sempre teve a capacidade de apanhar os sinais do tempo.
O Miguel Araújo e o António Zambujo a fazerem coliseus cheios é uma moda benigna, ambos são artistas. Ou os D.A.M.A. ou o Agir. São modas imparáveis e merecidas mas são inexplicáveis, não vale a pena fazer uma mesa-redonda com autores e editores, “vamos ver o que se passa”.
Não se consegue fabricar a receita certa?
Não se consegue explicar. E há modas que apetece abanar a cabeça das pessoas e dizer: pá, isto é uma treta, acordem, isto não faz sentido. Não vale a pena. Temos duas opções, uma é if you can”t beat them, join them ou então esperar que passe. Muitas vezes as modas esvaziam quem está ao lado. Tive fases de ser a moda absoluta, qualquer trejeito que fizesse era genial. E também já fui vítima de quem ao lado estivesse a passar essa fase com tanta intensidade que tudo o que eu fizesse naquele momento era… “ah, este já foi”.
Como é que vive isso?
Com a maior serenidade, temos de ter a inteligência de ler isso. O mar foi um grande ensinamento. O mar ensina que não mandamos em nada. Quando fazia as minhas viagens náuticas achava, a princípio, que podia marcar dias. No dia 15 de agosto chegamos a Ibiza, mas no dia 10 vamos marcar um jantar em Almerimar com o meu ex-colega de escola. Mentira. Chegávamos quando a natureza, o vento e o estado do mar achavam que devíamos chegar, rezando para que não houvesse uma correia de alimentação de um motor que fosse à vida ou que nenhum aparelho de pesca ficasse preso a uma hélice e tivéssemos de ficar à espera que fossem arranjar aquilo. O mar é uma lição de humildade tal que se extrapolarmos a nossa incapacidade de dominar seja o que for para a vida artística, para o dia-a-dia, ajuda–nos imenso. E sobretudo nunca pensar: “Porquê eu? Que azar que eu tenho, já viram?” Um querido amigo ia com a família e no momento em que foi buscar um refrigerante para o filho chocaram contra um contentor que tinha acabado de soltar-se de um barco. O contentor rebentou-lhes a parte da frente do barco e eles acabaram as férias num barco de borracha à espera que os fossem buscar e tiveram uma perda total no Mediterrâneo. Um barco de sonho comprado nesse ano, que eu jamais teria porque não chegava lá. O paraíso transformou-se num pesadelo. Nós vivemos dentro de um barco, no mar, e o que devemos fazer é: está bom tempo, está sol, está tudo ok? Vamos aproveitar o melhor possível. Olha, acabou-se o gasóleo, estamos à deriva. Liga-se a alguém, vêm buscar-nos, há dinheiro para encher o depósito? Qual é o sítio mais próximo? É assim que eu vou gerindo a vida e as extraordinárias crises que já fui tendo.
Já teve altos e baixos enormes.
Coisas fortíssimas.
Foi isso que permitiu que chegasse a estas conclusões, a esta sabedoria?
Sim, com a tristeza última – a última batalha que perdemos é a morte, essa está sempre garantida.
Pensa nisso?
Penso de forma criativa e benigna, não como objeto martirizador. Penso muitas vezes que formas estéticas há para lidar com certos tipos de decadências. Um dos meus ídolos de sempre é uma mulher chamada Phyllis Diller. Ela foi a primeira mulher de stand up na América, foi ela que abriu caminho à Lucille Ball ou a Carole Burnett. Era uma mulher encantadora e trabalhou até aos 80 e tal anos, só deixou porque depois do 11 de Setembro não queria andar a despir-se nas fronteiras e nos aeroportos, e dedicou-se à pintura. Teve uma vida tão gira, tão cheia, um pensamento tão divertido e tão coerente. Um dia abro a net e lá dizia: “Phyllis Diller morreu aos 91 anos, rodeada pela família e os amigos.” É uma pessoa que está cansada, que se deita na cama, rodeada dos amigos e desaparece, porque cessou funções. Morreu sem causa aparente. É uma coisa maravilhosa. A minha avó espanhola Manuela era uma grande gulosa, comia que se fartava, cozinhava lindamente e um dia depois de uma lauta refeição disse: “Vou encostar-me um bocadinho que estou muito enfartada.” À hora do lanche nunca mais aparecia e foram ver, estava ela gloriosa, deitada em cima do seu edredão de cetim, a dormir para sempre.
É assim que imagina a sua morte?
Gostei muito de um filme com o Michael Caine que se chama Children of Men [Os Filhos do Homem, 2006, Alfonso Cuarón], sobre uma humanidade onde deixou de haver crianças e de repente há uma mulher que engravida e há uma história fantástica à volta desse argumento. Todos eles têm um kit de eutanásia em casa. Há uma altura em que o Michael Caine está com graves problemas e resolve, com a mulher, usar o kit de eutanásia e ali ficam. A última palavra é deles. Tenho pena de que não tenhamos acesso a um kit desses para quando nos apetecesse. Para saber que está ali. E se for preciso vamos adiando, até com dor, com doença, o que quisermos, porque a última palavra é nossa. Irrita-me esta coisa politicamente correta de não termos direito a pôr fim à nossa própria vida. A menos que seja de formas horríveis, tiros na boca, atirar-se não sei de onde, enforcamento. Que tipo de sofrimento tens de ter para teres a coragem de te enforcar? Tens de estar numa dor profunda. Gostava que tivéssemos acesso a fechar o ciclo de uma maneira estética, sem dor. Abres o kit, ligas para a Servilusa – amanhã de manhã venham cá buscar-me se faz favor. E ninguém a dizer “ai não faça isso, ainda tem 98 anos, está tão bem”.
Sendo um homem da cidade adaptou-se bem aos ritmos da natureza aqui em Azeitão?
Durante os anos da televisão isto era-me indiferente, até enfadonho, não se passava nada. Está a falar com um arista que fez cinco espetáculos seguidos de uma a duas horas de beijinhos e fotografias, com vários quilómetros no bucho, hotéis, pessoas, vereadores, presidentes de câmara, organizadores, feirantes. Estive em campanha eleitoral cruzando-me – com muito gosto – com dezenas de milhares de pessoas. Acordar no meio do verde em que as únicas criaturas que te dizem qualquer coisa são cães que não te chateiam… A minha mãe é hoje minha convidada e está na vida dela. Tenho uma empregada que me dá vontade de rir porque põe os talheres ao contrário por ser canhota. É o paraíso. É a única maneira de me regenerar, para no próximo fim de semana estar outra vez genial quando subir ao palco.
Já viveu com muito dinheiro e com pouco dinheiro. Adapta-se bem?
Da minha perspetiva nunca vivi com muito dinheiro, porque nunca tive o que queria. O meu último barco tinha 20 e poucos metros e quando cheguei a Ibiza o lugar que me arranjaram era entre dois barcos de 30 e tal metros. Eu começava o dia a olhar para cima, para loiras fantásticas, armado em pobre, a dizer hola buenos días. Sempre que eles saíam para ir para a praia parecia que havia um terramoto porque os potentes motores dos seus barcalhões cagavam fumo e escapes para cima do meu que parecia uma pequenina casca de noz.
E quando está sem dinheiro?
Isso nunca estive, porque sou muito constante a trabalhar. Uma pessoa com um historial como o meu mesmo que não tivesse dinheiro teria sempre acesso a crédito. Posso ter fases em que o vermelho está muito intenso porque houve chatices a tratar, mas a vida corre. As grandes empresas têm todas passivos, mesmo as de sucesso.
Tem medo de alguma coisa?
Só da morte. E tenho esta capacidade genial de em qualquer altura poder recomeçar de qualquer maneira em qualquer sítio.
Diz que tem aquele grande património de espetáculo e que se vai adaptando consoante o público e a sua vontade. É intuitivo?
É um bocado como fazer amor. O Vasco Santana comparava-nos com as prostitutas, sem ironia. Ou seja: somos pagos para divertir o cliente, mudamos de roupa muitas vezes durante o dia. O que pode fazer uma prostituta feliz? Gostar dos seus clientes. Ganha dinheiro porque tem de ir para a cama com o cliente A, B ou C, mas como gosta deles tem prazer. Essa é que é a diferença: vais sofrer porque vais fazer aquilo ou vais divertir-te porque gostas dos teus clientes? E eu de há uns anos para cá sou uma espécie de prostituta com uma carteira de clientes que adora. Não faço fretes.
O que é que o faz rir?
Há duas coisas que me fazem rir. A primeira são aquelas coisas primárias, a queda da pessoa, a criança que espeta o gelado no nariz do pai. E depois um intérprete que me toque e que esteja a fazer qualquer coisa de muito bem construído e artístico, e que me faz rir pelas razões certas. Às vezes o encantamento é tão intenso que nem me rio ou rio–me para dentro. Com o Woody Allen nos anos 1970 e 80, eu ficava estático a ver aquelas cenas deliciosas tão bem construídas, tão divertidas, e no entanto não soltava nenhuma gargalhada.
E ainda se lembra dessas cenas?
Não só me lembro como me serviram de modelo para coisas que fiz, inspirado nessas lógicas. Por exemplo, o plano fixo onde entram e saem coisas, como fiz no Nelo & Idália e no C.R.E.D.O. – isso é muito Woody Allen, foi o primeiro a fazer isso. Ele foi um precursor de muitas coisas, é tão genial que alguns pares têm medo de aceitar isso, preferem ignorá-lo, crucificá-lo com a história da filha adotiva com quem se casou.
Conheceu-o? Como é que se fala com o Woody Allen?
Não se fala. Eu estava num hotel onde fico sempre em Nova Iorque, eram quatro da tarde e o bar estava vazio. O barman, muito educado, disse-me: “Está ali sentado o Woody Allen e peço-lhe que não interaja com ele porque não suporta.” Sentei-me fingindo que ele não existia e ele diz: “Quer fazer-me companhia?” Quero. A coisa pode ter durado 45 minutos. Contei-lhe o que fazia, a importância que ele tinha tido na minha vida, e discuti os filmes, e disse que me apaixonei pelo George Gershwin por causa do Manhattan. Ele ficou deliciado, tinha ali um woodyallenista. Depois fiz um erro que inquinou tudo. Achei que podia combinar uma eventual entrevista. Fingiu que tinha recebido uma mensagem, levantou-se e desapareceu. Aconteceu-me também com o Henry Kissinger.
Também estava no bar de um hotel?
Estava num restaurante chamado Le Cirque, em Nova Iorque, e o barman era português e pôs-me na mesa ao lado do Kissinger . Começámos a falar sobre o Algarve e outras coisas, uma grande conversa. Encontrei-o mais tarde no Concorde e ele lembrava-se de mim mas não me deu mais troco, estava lá na sua literatura. Tenho imensas coisas dessas muito originais. Tenho uma cena genial com o Larry King.
Então?
Estava em 2002 em Los Angeles, fui a uma loja comprar uma camisola, quando saio ele ia a entrar e eu soltei um berro. Quando comprei a minha primeira parabólica, não havia ainda cabo, via todos os dias o Larry King na CNN. Ele apanhou um susto enorme, achou que eu lhe ia fazer mal, pedi-lhe muita desculpa, expliquei-lhe que o acompanhava. Ele tinha ido lá entrevistar a Linda Tripp, uma amiga da Monica Lewinsky. Disse-lhe que o adorava e que era comediante, e ele olhou para o relógio e disse: tenho de ir entrevistar a senhora às quatro horas, quer ir tomar um copo ao Beverly Hills Hotel? Vamos sim senhor. Estava com um grupo de amigos, disse-lhes “não vou existir nos próximos tempos”, e perguntavam-me: quem é esse velho? Fui com ele para o bar e ficámos a conversar.
Encontrar-se assim por acaso com dois dos seus ídolos é extraordinário.
E tenho a história da maravilhosa Joan Collins que foi minha convidada no Parabéns. Convidou-me para ir aos anos dela ao Hotel Dorchester e lá vou eu, convencido de que me iam dar atenção. Adorei, vi imensa gente conhecida mas ninguém me ligou nenhuma, nem ela. Muitos anos depois, estava na marina em Ibiza. Em frente a mim ficava sempre o Valentino. Eu fazia ginástica no paredão e ao final da tarde ficava ali sentadinho. De repente abre-se a porta de trás do barco e oiço assim: “Herman darling!” A Joan Collins!
Afinal reconhecia-o.
Eu tinha um Rolls Royce quando ela veio ao Parabéns e fui buscá-la. Mas havia um trânsito miserável do aeroporto para a Abrunheira. No meio daquele trânsito impensável, ela olha para as camionetas a toda a volta e pergunta: “Where the fuck are we? India?” O catering na Edipim era muito bom, era organizado por uma princesa da produção, a Isabel Mello Breyner, e ela tinha sempre tudo impecável, chiquíssimo. Mas por alguma razão naquele dia tínhamos tido um patrocínio de umas merdas de uns bombons, pareciam daqueles que nos dão de troco e sabem a sabonete. E ela senta–se no camarim, tira um bombom e diz “são os piores chocolates que comi na vida”, e cuspiu aquela porcaria para dentro do papel de prata e devolveu-os ao cinzeiro.
Ainda assim, era o Herman darling?
Estivemos juntos até ela desaparecer num Bentley e ela lembrava-se da história do Rolls e da porcaria dos bombons e chorou a rir. Porque ela percebeu que estava no meio de gente muito civilizada. Ah, e outro encontro maravilhoso: fui a Paris ver um desfile da Fátima Lopes. Fico sempre no Hotel Ritz na Place Vendôme, mas puseram-me no Hotel Costes. Numa mesinha pequenina do bar está o Yves Saint Laurent com o Pierre Bergé, o seu companheiro de sempre. Digo: “Você para mim é uma referência, vi a sua casa em Marraquexe e achei deslumbrante, as suas peças de arte, a ligação ao Mondrian, para mim é sempre uma inspiração.” E ele em vez de dizer o costume, muito obrigado e tal, diz–me: “Eu conheço a sua voz. Você não é um tipo que faz televisão aos domingos?” As empregadas dele eram todas portuguesas e aos domingos estavam na sala da televisão e paravam, não havia água nem serviço para ninguém. Ele tinha de ir buscar as coisas à cozinha, porque a hora do Herman Sic era mágica para elas. Ele ouvia-me falar e elas riam, riam. Então ele reconhece-me como o portugais que lhe estragava a vida aos domingos.
E ficaram a conversar?
A grande preocupação quando se apanha uma figura destas é libertá–la o mais depressa possível, não ficar ali a chatear. Eu tento libertá-lo e diz-me ele: “Sente-se aqui um bocadinho, quer tomar alguma coisa?” Sento-me à mesa, ele estaria já um bocadinho doente, morreu com um tumor cerebral, sentia-se que já não estava muito bem, mas ainda muito lúcido e muito bem-disposto. “Quer um chocolate quente?” Eu nunca peço chocolate quente mas ia dizer o quê? Bebi um chocolate quente genial, daqueles fortíssimos qem ue a colher fica em pé, e ali estive talvez 15 ou 20 minutos. Fascinado a falar de tudo e de coisa nenhuma, com o Yves Saint Laurent. Na altura não havia telemóveis, então tirei uma selfie mal enjorcada com uma máquina fotográfica. À noite no desfile disse: “Estive a tomar um chocolate quente com o YSL.” Isso é que eles riram. “Deves ter estado deves, e logo com esse que não está disponível para ninguém, está-se completamente a borrifar.” Felizmente tinha a fotografia para provar.
Isso acontece consigo, pessoas abordarem-no. Está disponível?
Trato-as sempre muito bem porque sei o grato que fico quando me trataram bem. Nunca trato mal as pessoas.
Nunca o ouvi falar sobre o amor na sua vida.
Tenho paixões longas e duradouras, sempre com pessoas que não são públicas, portanto não tenho o direito de arrastar as pessoas amadas para baixo do projetor. Saio ao meu pai, sou como os pinguins que quando têm um outro pinguim ou pinguina aquilo dura e não acaba mais. E eu sou muito assim, o que é bestial porque me preserva de muitos dissabores e mesmo quando me tentaram lixar não conseguiram porque a minha vida é tão ausente de aventuras… Tenho paixões que duram eternidades.
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