Cabelos brancos, uma expressão fechada e determinada, calças de ganga. Se calhar já lhes pediu uns trocos, e provavelmente não agradeceu com um sorriso. Nos últimos dias, talvez tenham reparado também no olho negro e nos pontos que tem na cara.
Quem já passou pelo centro de Washington D.C. provavelmente deu de caras com uma mulher de 80 anos chamada Wanda Witter.
Há anos que Witter dorme na esquina entre as ruas 13 e G, na zona Noroeste de Washington, no seu saco-cama azul, bem fechado até cima para manter as ratazanas e as baratas à distância. No seu carrinho de supermercado, acorrentado às cadeiras da esplanada que fica mesmo ao lado, está uma torre feita com três malas.
Talvez até lhes tenha dito que dentro dessas malas está toda a papelada que prova que o governo federal norte-americano lhe deve mais de 100.000 dólares. E tinha razão.
“Diziam-me que estava louca. Que podia deitar as malas ao lixo”, disse Witter, uma antiga metalúrgica que nasceu em Corning, no estado de Nova Iorque, divorciada e mãe de quatro filhas.
“Quando decidi passar a dormir nas ruas, sabia que tinha de ter muito cuidado. Estava sempre a repetir a mim mesma que não podia fazer nenhuma parvoíce. Porque eles iam pensar que eu estava louca”, disse.
E também tinha razão em relação a isso.
Mas, ao fim de mais de uma dúzia de anos, Witter encontrou finalmente alguém que não a tratou como uma louca, alguém que acreditou nela – uma assistente social chamada Julie Turner.
Há nove meses, Turner, que trabalha para uma organização ecuménica sem fins lucrativos, recebeu um telefonema de uma outra associação humanitária a perguntar-lhe se podia ajudar a tratar de Witter.
A assistente social já tinha tentado ajudá-la uma vez, quando a encontrou numa cantina social. Witter rejeitou-a. Mas desta vez, Turner, que também ajuda os sem-abrigo que vendem o jornal Street Sense, conseguiu persuadir Witter a falar com ela. Em vez de a tratar como uma mulher sem-abrigo rude e louca, Turner começou a ler os documentos que aquela mulher transportava nas malas.
“Ela tinha todos os documentos bem organizados, tudo em ordem. E tinha razão, teve sempre razão. Deviam-lhe mesmo aquele dinheiro todo”, disse a assistente social, de 56 anos.
Witter vai receber um cheque da Segurança Social no valor de 99.999 dólares, disse a sua advogada, Daniela de la Piedra, especialista em litígios com a Segurança Social. É a quantia mais elevada que a agência pode pagar de imediato, mas Witter tem a receber ainda mais dinheiro, que deve ser pago dentro de pouco tempo, assim que a burocracia for ultrapassada.
Teimosia contra a burocracia
Será o culminar da sua longa batalha. Witter vagueou pelas ruas de Washington durante 16 anos, enquanto ia ligando para o número da Segurança Social, enviava cartas e tentava que alguém ouvisse a sua história.
Tudo começou depois de ter perdido o emprego como metalúrgica na fábrica Ingersoll-Rand em Corning, no estado de Nova Iorque, onde montava turbinas e componentes de motores.
Depois disso, foi viver com uma das suas filhas para Fort Carson, no estado do Colorado, e matriculou-se no community college de Pikes Peak (uma instituição de ensino entre o secundário e a universidade). Acabou o curso em três anos e depois tornou-se solicitadora.
Pensou que conseguiria arranjar emprego na capital do país, e por isso mudou-se para Washington em 1999. “Washington era a cidade onde estavam todos os advogados”, disse Witter.
Mas arranjar emprego não era uma tarefa fácil. Quem queria dar emprego a uma mulher austera, a caminho dos 70 anos, e que ainda se comportava como uma metalúrgica? Ninguém. Foi arranjando pequenos trabalhos e acabou por ficar sem dinheiro.
Em 2006, decidiu pedir os pagamentos da Segurança Social a que tinha direito, mas os cheques que iam chegando não batiam certo. As quantias variavam entre os 300 dólares e os 900 dólares por mês. E ela quis perceber o que se passava. Telefonou e perguntou, mas ninguém lhe deu respostas.
Farta daquela confusão, começou a escrever a palavra “Void” nos cheques, para inutilizá-los, e devolvia-os à Segurança Social, recusando-se a levantar as quantias que lhe enviavam porque sabia que estavam erradas.