Afinal, é ou não ilegal vender bolas-de-berlim com creme? E pode jogar-se à bola? Ou dar música à praia inteira?
O jornalista Luís Ribeiro foi à praia e encontrou alíneas surpreendentes…
Há semanas, meio país ficou indignado (e outro meio, surpreendido), com a proibição de surfar em duas praias concessionadas da barra de Aveiro, decretada pela capitania local, depois de algumas queixas de banhistas incomodados.
Entretanto, depois de sonoros protestos, a interdição foi levantada, mas ficou a dúvida: como é possível o capitão do Porto ter sequer imaginado fazer uma coisa destas?
Simples – lendo a alínea n) do n.º 9 do artigo 10.º do Decreto-Lei n.º 159/2012, que define a “Interdição da prática de surf, windsurf e outras atividades desportivas similares em áreas reservadas a banhistas”.
Para o leitor não ser apanhado de surpresa, aqui fica um manual com resposta a algumas das suas dúvidas (e falsas certezas), para que a única indecisão seja entre uma bola com e sem creme. Se é que é legal comer uma bola com creme.
Vou no para-arranca da Ponte 25 de Abril, de janela aberta, a cantar Vou para o Sol da Caparica, pouco importado com os olhares de soslaio dos meus companheiros de trânsito, quando reparo que estou de havaianas. Chi! Se a polícia me manda parar, é multa certa. Toda a gente sabe que não se pode conduzir de chinelos de enfiar o dedo.
Já houve casos de condutores a serem multados por esta razão, mas foram situações de claro excesso de zelo por parte dos agentes. Não há nada no Código da Estrada que proíba tal coisa. O n.º 2 do artigo 11.º diz que “os condutores devem, durante a condução, abster-se de quaisquer atos (…) suscetíveis de prejudicar o exercício da condução com segurança”, e será essa a justificação para uma eventual coima. Mas só uma interpretação muito criativa poderá ler nas entrelinhas “as havaianas são um perigo para a condução”. O mesmo vale para a condução em tronco nu, outra ideia feita sem sustentação legal. Isto no caso dos homens: uma mulher em tronco nu pode vir a ser acusada de exibicionismo.? A propósito…
Já na praia, dou por mim a abanar a cabeça em jeito de censura para as mulheres de mamas descobertas que me rodeiam. Devia ser proibido. Toda a gente sabe que o sol faz mal à pele sensível daquela zona do corpo.
A lei é omissa em pormenores, pelo que, mais uma vez, só uma interpretação imaginativa (e moralista) pode resultar em multa. A polícia marítima diz que, em teoria, atua se houver acusações de atitudes exibicionistas, mas garante que o topless está generalizado e não tem registos de queixas. Aliás, a existência de queixas é quase sempre razão indispensável para a autoridade agir, na praia.
Levanto-me, pego na bola e ofereço-me para ensinar os jovens do lado a jogar. Ao primeiro chuto acerto na cabeça de uma criança próxima. Tento convencê-la a não chorar, sob a promessa de um carregamento de gelados, mas já vejo o pai dela a caminho do nadador-salvador. Acabou a brincadeira.
Acabou mesmo. Se for ler o edital de praia, é quase certo que lá está uma alínea a proibir jogos com bolas (que pode incluir raquetas), que incomodem outros banhistas. A lei diz que os editais devem contemplar a “interdição de atividades desportivas, designadamente jogos de bola, fora das áreas terrestres ou aquáticas expressamente demarcadas”. O mesmo vale para o barulho: é interdita “a utilização de equipamentos sonoros e desenvolvimento de atividades geradoras de ruído que (…) possam causar incomodidade”.
As repreensões do nadador-salvador até me fizeram perder a fome, mas o vento começa a trazer-me os brados distantes de um homem de branco. “Olhà bola-de-berlim!” Chamo-o como quem não quer a coisa, tentando que a saliva não me tartamudeie a voz, chamo-o, e ele pergunta-me: “Quer com ou sem creme?” Mas… A ASAE não tinha proibido os bolos com creme?
Não. A ação de fiscalização sobre bolas–de-berlim que aconteceu há uns anos, e fez nascer o mito, incidiu sobre o processo de fabrico, não de comercialização. Em comunicado sobre a venda nas praias, a ASAE adverte apenas que “a legislação determina é que esses produtos devem estar protegidos de qualquer forma de contaminação”.
O cheiro do bolo fez aproximar um cocker spaniel. Como não me apetece dividir a bola, e quero mostrar que às vezes também estou do lado certo da lei e da ordem, vou avisar o nadador-salvador que há um cão na praia.
Efetivamente, nas praias concessionadas e nas horas demarcadas pela concessão, não é permitida a circulação e permanência de animais no areal. Como sempre, são abertas exceções para cães de assistência, treinados para ajudar pessoas com deficiência.
Está na altura de tentar recuperar aquele euro e meio que gastei no bolo. Pego no meu velho mas fiável detetor de metais e…
… Imediatamente regresso ao mundo da pequena criminalidade. A Lei n.º 121/99 determina a proibição de utilizar “detetores de metais na pesquisa de objetos e artefactos relevantes para a história, para a arte, para a numismática ou para a arqueologia”. Estritamente falando, moedas correntes não poderão ser consideradas numismática. E procurar um anel que acabámos de perder não parece estar na letra da lei, mas quem leva um prospetor de metais para a praia para a eventualidade de perder um anel?
Agora que me apreenderam o detetor de metais, terei de entreter-me a pescar o jantar. Saco da minha bela cana, aponto, puxo o braço atrás e lanço o anzol. É ali que está o meu robalo. Quase que o vejo. Quase que o saboreio.
Prepare-se para ficar sem a cana. A pesca lúdica não é permitida “nos planos de água associados às concessões balneares”. A lei também proíbe as atividades de apanha de marisco (como bivalves), mas isto apenas se for com fins económicos.
Para compensar as mágoas do peixe que não vou comer à noite, ataco a salada russa que trouxe num tupperware como se não houvesse amanhã. Má decisão. Está um calor de ananases e agora vou ter de me refrescar com o suor do corpo durante duas ou três horas, até acabar de fazer a digestão.
Esta é uma proibição clássica, imposta pelas autoridades maternas: “Não podes tomar banho depois de comer.” Mas, neste caso, as mães e as avós não têm razão. Já foram feitos vários estudos científicos sobre o assunto e o resultado é claro: não há qualquer efeito da água (nem pela água em si nem pelo choque térmico) na digestão.
A bandeira está vermelha. Vim com a prancha de surf debaixo do braço pelo estilo, mas já percebi que, para me refrescar, vou mesmo ter de me fazer à espuma.
É verdade que os surfistas não têm de ficar em terra quando a bandeira está vermelha, uma vez que a prancha é equiparada a uma embarcação (já os praticantes de bodyboard podem ter problemas, pois os nadadores-salvadores e a polícia marítima distinguem entre pranchas “profissionais” e “para brincar”). Por outro lado, como se comprovou pelo caso da barra de Aveiro, a lei interdita o surf em zonas de banhistas. No entanto, a interpretação habitual passa por considerar que a área de banhistas se fica pelos primeiros 50 metros da linha de costa, pelo que não há hipótese de chocarem uns e outros. De qualquer forma, se a bandeira estiver vermelha, não há gente a nadar…
Dia de praia para esquecer. Vou pegar nos guardanapos, cascas de fruta, latas vazias e… Não! O caixote está tão longe! Bom, a maré alta encarregar-se-á de se desfazer do lixo.
Se a polícia marítima vir, prepare-se para perder o amor a €55: é essa a penalização mínima para quem deposite “lixo fora dos recetáculos próprios”. Aliás, a maioria das interdições desrespeitadas têm esse preço, e podem ir a um máximo de €550. Atenção que muitas capitanias também proíbem a utilização de embalagens de vidro no areal.
Depois de pagar multa atrás de multa, já não tenho trocos nem para beber um café. Não que precise de cafeína – tantos encontros com a polícia tiraram-me o sono – mas, se não consumir, os funcionários do bar não me deixam usar a casa de banho. Só espero que não esteja trânsito no caminho de regresso…
Nem tudo são más notícias: os bares e restaurantes de praia são obrigados a deixar as pessoas usarem as suas instalações sanitárias. É essa uma das condições da concessão, tal como prestar cuidados imediatos de saúde, em caso de necessidade. Ou seja, na praia, a zona de maior liberdade é mesmo a casa de banho.