Chegou ao L’Obéissance est morte uma denúncia sobre uma prática inacreditável, outrora apenas useira e vezeira no sistema privado, mas que pelos vistos está a generalizar-se também no sistema de ensino público.
Segundo a denúncia, feita por um pai de uma criança que frequenta a escola pública, os alunos passaram a “usufruir”, quinzenalmente e durante metade do ano lectivo, da substituição de uma das suas aulas por uma formação sobre “educação financeira” organizada em parceria entre a Associação Fénixis e a Consultora Financeira Deloitte.
Em função da denúncia, que publicamos de seguida, pudemos confirmar que a Consultora Financeira Deloitte financiou a Associação Fénixis – Desenvolvimento Comunitário e Saúde Mental, para um projecto que os levará, durante seis meses, a ministrar uma aula quinzenal num agrupamento de escolas de Oeiras, intitulado: “Grão a Grão, Projecto de Educação Financeira”, direccionado às crianças do 3º e 4º ano do Ensino Básico. O Ministério da Educação, ao abrigo da autonomia escolar, lava as mãos de qualquer responsabilidade nos negócios feitos pelos agrupamentos, e não tem, segundo apuramos, forma de avaliar o que quer que estas decidam fazer no que diz respeito à subconcessão do horário lectivo.
Acresce que, tal expediente é feito unilateralmente, e que além desta parceria há outras cujo negócio permite que entidades falaciosas assumam a tarefa de dar formação ideológica e religiosa, com alguns desses projectos a serem concessionados, por exemplo, aos Leigos para o Desenvolvimento, uma organização ligada à Igreja Católica. Naturalmente, a promiscuidade é de difícil resumo, mas basicamente a Deloitte, que consegue retorno financeiro deste investimento por via dos privilégios que granjeia com o mecenato cultural – com conhecidos privilégios fiscais – leva a sua agenda às escolas que pagam com o cérebro das crianças o que não tem como pagar em numerário. Se já seria absurdo pagar-se para que a Mac Donalds organize palestras sobre nutrição, ou a CGTP sobre sindicalismo, a jogada da Deloitte e a submissão das escolas a este negócio espúrio é repulsivo e contrário à constituição que defende a Escola deste tipo de perversões. Fica a denúncia, esperando que cada leitor que também é pai ou mãe procure saber quem mais anda a vender banha da cobra nas escolas públicas, sob a forma de futuros, onde as convicções das gerações que se deviam formar com liberdade de pensamento e antagonismo crítico são usadas como moeda de troca.
DENÚNCIA
“ANDAM A NEGOCIAR O CÉREBRO DOS NOSSOS FILHOS”
“Ontem à noite o meu filho trouxe este surreal aviso da escola. Conforme se pode ler, a consultora financeira Deloitte, reputada por vender serviços de limpeza da imagem da pornografia que nos tem sido imposta pelo sistema financeiro, financiou uma associação de psicólogos chamada Fénixis, para que estes ofereçam à escola a aplicação de um “Programa de Educação Financeira”.
Desde logo porque fiquei chocado por não se tratar de algo opcional, mas sim de uma notificação sobre factos já consumados – a formação já está a decorrer – pelo que fui pesquisar a agenda de tão obscuro negócio, que oferece formação ideológica a troco de tempo livre para formatar a cabeça de cerca de 1000 jovens, todos do mesmo agrupamento, curiosamente aquele que maior PIB\per capita apresenta, no Conselho de Oeiras.
“Potenciar o empowerment social, apostar na inovação social, impulsionar a participação cívica e promover o bem-estar. Acreditamos que estas metas são conseguidas por via de propostas com enfoque na Educação e na promoção da Saúde Mental, assentes numa lógica fundamentalmente preventiva. Com recurso à alegoria do mito da Fénix, cremos que todo o indivíduo dispõe da notável e exclusiva capacidade humana de reinvenção e superação face à sua própria existência, constituindo em si mesmo uma força de criação, desenvolvimento e mudança.” Fenixis
Da parte da Associação envolvida pouco se consegue perceber para lá do uso e abuso do palavreado que agora está na moda mas que nada quer dizer – empowerment, engagement e afins – pelo que só consegui perceber que a formação é oferecida a custo monetário zero, mas fica evidente que a escola, apesar de nada pagar em dinheiro, oferece como moeda de troca a folha em branco da formação ideológica dos alunos.
Da parte da consultora, porém, foi mais fácil vislumbrar o que recebe a reboque do véu de tamanha bonomia. Na fundamentação do financiamento do projecto, a Deloitte esclarece, não sem razões para agravar o meu espanto, que o objectivo é que serão abordadas temáticas como “a importância da moeda e dos bancos, meios de pagamento, crédito, seguros e planeamento e gestão de um orçamento familiar. Desta forma, procura sensibilizar as crianças para as questões da sustentabilidade e cidadania.”
Os planos curriculares não existem. A organização escolhida pela Deloitte como testa de ferro da sua cruzada ideológica nada sabe de economia e tem como formadoras apenas e só profissionais formados em psicologia. O seu metier é, supostamente, a saúde mental, mas serve para que os mercenários do liberalismo entrem nas escolas com a sua ideologia em riste.
Sem qualquer opção por parte dos alunos e encarregados de educação, ao contrário do que outrora, e bem, se conquistou ao garantir que a educação religiosa e moral fosse opcional, os alunos são assim usados para que a escola pague o “serviço” com as crianças, uma nova e perversa forma de negociar futuros.
A economia pode e deve ser ensinada às crianças, de resto, boa parte delas, pelas dificuldades que os pais enfrentam, já terão boas noções sobre a economia do lar, mas qual o sentido de lhes injectar a pastilha sobre a “importância dos bancos” ou dos “seguros”, antes da poesia, do teatro, da equação, da lógica, da geografia ou da história? Mais, se é para lhes ensinar algo sobre o sistema financeiro, como é possível que aceitemos que essa tarefa seja delegada numa agência cujo lucro advém de camuflar as mal-feitorias dos agentes que operam precisamente no sistema financeiro? Vão explicar porque razão foi a banca a contrair a dívida? Vão deixar claro que os seguros são uma forma moderna de agiotagem? Vão deixar claro que o capitalismo implica o aumento exponencial dos pobres? Vão fazer as contas que sugere Almeida Garrett, quando nos pergunta ‘quantos pobres são necessários para fazer um rico?’.
Não sei o que farão os outros, mas o meu filho ficou a saber que tem direito quer a sair da aula quer a reivindicar a sua parte caso queira assistir ao espectáculo. Já que fazem negócio com a sua disponibilidade de tempo para ouvir mentiras, ao menos que lhe paguem a quota parte da operação comercial que foi feita com o seu pensamento. É a economia, estúpido! Pena é que não deixem a educação fora disto e que estejam, também, a transformar o saber público num negócio privado.”